Brasília, 19/09/2011 - O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, em sessão plenária que realiza hoje (19), votou à unanimidade pela condenação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 471/2005, a chamada PEC do "trem da alegria" dos cartórios. A proposta de emenda prevê a investidura nos serviços notariais e de registros, dos responsáveis e substitutos das serventias vagas e que estejam no exercício interino por mais de cinco anos ininterruptos, independentemente de concurso público. A manifestação de desaprovação e repúdio à PEC - que atenta contra princípios constitucionais e a moralidade pública, na opinião do relator do processo, conselheiro federal Pedro Henrique Braga Reynaldo Alves (Pernambuco) -, será comunicada pela OAB ao Senado Federal e Câmara dos Deputados, onde tramita atualmente.
A PEC 471 visa alteração no artigo 236 da Constituição Federal de 1988, o qual dispõe que os serviços notariais e de registros são exercidos em caráter privado, por delegação do poder público, e que o ingresso nessas atividades depende de concurso público de provas e títulos. Mas, segundo o relator Pedro Henrique, se for aprovada a PEC na forma em que está tramitando na Câmara "todos aqueles que tenham substituído um único dia em cartório extrajudicial antes de 20 de novembro de 1994, e que no momento da promulgação da Emenda Constitucional estiverem respondendo pela serventia (ainda que por um dia), obterão a delegação do cartório, tudo em prejuízo ao princípio da impessoalidade e da forma republicana de governo".
A seguir, íntegra do relatório e voto sobre a PEC do "trem da alegria" dos cartórios aprovados pelo Conselho Federal da OAB hoje, por unanimidade:
PROPOSIÇÃO nº 2008.18.05794-01
Origem: Associação Nacional de Defesa dos concursos para Cartórios - ANDECC.
Assunto: Pedido de Providência contra a Proposta de Emenda Constitucional nº 471/2005, que prevê a efetivação de tabelião titular ou substituto de cartórios que estão no cargo sem concurso público.
Relator: Conselheiro Federal Pedro Henrique Braga Reynaldo Alves (PE).
Trata-se de pedido da Associação Nacional de Defesa dos Concursos para Cartórios - ANDECC dirigido a este Conselho Federal da OAB, onde pugna pelo apoio desta instituição contra a Proposta de Emenda Constitucional nº 471/2005, cujo art.2º prevê a investidura nos serviços notariais e de registros, dos responsáveis e substitutos das serventias vagas, que estejam no exercício interino por mais de 5 (cinco) anos ininterruptos independentemente de concurso público.
Alega a instituição proponente que a proposta reformista da Constituição Federal em questão, que trata de alterar o art.236, além de contrariar princípios da própria Lei Maior, constituiria um verdadeiro "trem da alegria dos cartórios", conforme terminologia anotada pela imprensa sobre o tema.
A matéria foi submetida à apreciação da douta e digna Comissão Nacional de Estudos Constitucionais, que, através de judicioso parecer do ilustre Professor José Afonso da Silva (fls.28/30), pontuou que a proposição malfere o princípio da moralidade administrativa (art.37, caput), e pugnou pela manifesta inconveniência da medida, embora tenha enfatizado que, apesar de imoral dita PEC não hostilizaria a princípio cláusula pétrea da Constituição Federal.
O processo restou redistribuído a este relator para apreciação plenária.
É o relatório.
VOTO
A matéria encontra amparo no escopo de atuação da OAB, notadamente em sua competência para "defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de Direito", preconizada no inciso I do art.44 da Lei nº 8.906, de 04 de julho de 1994, revelando-se ainda de grande conveniência e oportunidade, pelo que recomendo seu conhecimento pelo Plenário desta Casa.
A PEC sob análise visa implementar nociva alteração ao disposto no art. 236 da Constituição Federal de 1988, que atualmente reza:
"Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público.
§ 1º - Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário.
§ 2º - Lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro.
§ 3º - O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses." (grifo nosso).
Consoante nosso modelo constitucional, o ingresso na atividade notarial e de registro ocorre, atualmente, mediante a aprovação em concurso público de provas e títulos. Entretanto, antes da Constituição Federal de 1988, as serventias notariais e de registros eram entregues a pessoas indicadas pelos governantes e herdadas de pai para filho, ou até mesmo inseridas nos testamentos destinadas a alguma membro da família, resultando em um odioso regime hereditário, hostil ao princípio republicano.
O regime jurídico anterior, aplicável à sucessão das serventias notariais e de registro público, era claramente inspirado na raiz histórica de nossa colonização, em especial nas capitanias hereditárias, vigentes nos idos dos anos de 1534 e 1536, nos auspícios do rei de Portugal D. João III. Em tal época, em forma de benesses aos "amigos dos reis", todos os favores eram permitidos, e o patrimônio do próprio Estado se confundia com o da Coroa.
A matéria referente à efetivação dos responsáveis e substitutos de cartórios foi levada à discussão originalmente no Congresso Nacional ainda na vigência da Constituição de 1967. Quinze anos depois, a Emenda nº 22, de 1982, assegurou aos substitutos, em caso de vacância, a efetivação no cargo de titular, desde que contassem com cinco anos de exercício, até 31 de dezembro de 1983.
A Constituição de 1988, em coerência com o regime geral de acesso aos cargos públicos - que excetua os chamados cargos comissionados -, preconiza que o ingresso na atividade notarial e de registro depende de prévio concurso público, acrescentando que nenhum cargo ficaria vago por mais de seis meses sem a abertura de concurso. Destarte, até a realização da seleção pública, os Tribunais de Justiça de cada estado têm que designar substitutos temporários para evitar a descontinuidade do serviço.
A regulamentação de tal dispositivo constitucional, por sua vez, foi veiculada pela Lei nº 8.935/1994, sendo certo que justamente o hiato observado entre a vigência da nova ordem constitucional (05/10/88) e a disciplina legal regulamentadora dos cartórios (18/11/94) é que vem sendo o mote da malsinada PEC.
Nesse contexto é que em outubro de 2005 o deputado João Campos (PSDB-GO) apresentou a PEC nº 471, que através de seu art.2º, vista efetivar, sem concurso público, responsáveis e substitutos de cartórios "investidos na forma da lei". Na comissão especial da PEC, foi restringida a abrangência da emenda, com a efetivação apenas de quem ingressou no serviço notarial até 18/11/94. Dessa forma, substitutos que assumiram a função até aquele data e estão no cargo nos últimos cinco anos serão, acaso aprovada a Emenda, beneficiados indevidamente com a efetivação em cobiçado cargo publico à míngua de qualquer concurso, em flagrante violação aos princípios da moralidade e isonomia.
Observe-se que os requisitos para o exercício da delegação estão previstos no artigo 14 da Lei n. 8.935/1994, que exige:
I - habilitação em concurso público de provas e títulos;
II - nacionalidade brasileira;
III - capacidade civil;
IV - quitação com as obrigações eleitorais e militares;
V - diploma de bacharel em direito;
VI - verificação de conduta condigna para o exercício da profissão. (grifo nosso)
Prevê, ainda, a referida lei, que os concursos serão realizados pelo Poder Judiciário, com a participação, em todas as suas fases, da ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL, do Ministério Público, de um notário e de um registrador.
Destarte, com o advento da Lei 8.935 de 1994, não há o que se falar em vácuo normativo, muito menos em direito adquirido, pois os indivíduos que exercem de forma irregular as serventias notariais e registrarias, sem concurso público, restaram legalmente investidos de uma delegação precária e provisória.
Com efeito, por força da expressa inclusão do princípio da moralidade no caput do art. 37, a ninguém será dado sustentar, em boa razão, sua não incidência vinculante sobre todos os atos da Administração Pública. Ao administrador público brasileiro, por conseguinte, não bastará cumprir os estritos termos da lei. Tem-se por necessário que seus atos estejam verdadeiramente adequados à moralidade administrativa, ou seja, a padrões éticos de conduta que orientem e balizem sua realização. Se assim não for, inexoravelmente, haverão de ser considerados não apenas como imorais, mas também como inválidos para todos os fins de direito, dada a concretude de tal princípio constitucional.
Corroborando tal entendimento cabe citar o magistério de JOSÉ EDUARDO CARDOZO acerca de tal princípio na órbita jurídico-constitucional:
"Entende-se por princípio da moralidade, a nosso ver, aquele que determina que os atos da Administração Pública devam estar inteiramente conformados aos padrões éticos dominantes na sociedade para a gestão dos bens e interesses públicos, sob pena de invalidade jurídica".[1]
Ao lado da imoralidade, temos ainda como ameaçados os princípios isonômico e da impessoalidade, que são corolários do próprio princípio republicano, o que denota a natureza um tanto elementar do mérito da questão enfrentada.
Observe-se, ainda, que o CNJ - Conselho Nacional de Justiça, ao acompanhar a tramitação da PEC 471, já se manifestou por mais de uma oportunidade a respeito da matéria.
Em nota pública assinada pelo então Corregedor do CNJ, Ministro Gilson Dipp, restou consignado:
"A inexigência de concurso público, reinante antes da Resolução nº 80, permitia que cartórios geradores de grandes rendimentos, em alguns casos verbas que superam R$ 500 mil por mês, fossem entregues ao controle de pessoas muitas vezes escolhidas sem qualquer critério transparente."
Em momento seguinte, ao analisar os termos do substitutivo da PEC em questão, o CNJ, em Nota Técnica repudia sua eventual aprovação pelo Congresso Nacional, estatuindo/recomendando:
"A Corregedoria Nacional de Justiça, no cumprimento de suas atribuições constitucionais e regimentais de expedir atos destinados ao aperfeiçoamento dos serviços notariais e de registro, emite a seguinte nota técnica:
1. A redação original da PEC 471, que já foi objeto de análises deste Conselho Nacional de Justiça, outorgará delegações até mesmo àqueles que foram designados há poucos dias para responder por um cartório extrajudicial.
2. O substitutivo apresentado pela Comissão Especial, se aprovado, outorgará a delegação a pessoas que responderam por cartório extrajudicial, ou nele substituíram, ainda que por um único dia, antes de 20 de novembro de 1994. O substitutivo exige apenas que os beneficiários estejam respondendo pela serventia a partir de 2004, época em que já era público e notório que as designações efetivas sem concurso público se davam a título precário.
2.1. É imprescindível esclarecer que a substituição é freqüente e que o substituto designado para responder pelo serviço, nas ausências e impedimento do responsável, muitas vezes é filho ou cônjuge do próprio responsável, tudo nos termos do artigo 20 da lei n.8.935/1994.
3. Se aprovado o destaque de bancada do PMDB, com a exclusão no substitutivo da expressão "há no mínimo cinco anos ininterruptos imediatamente anteriores", todos aqueles que tenham substituído um único dia em cartório extrajudicial antes de 20 de novembro de 1994, e que no momento da promulgação da Emenda Constitucional estiverem respondendo pela serventia (ainda que por um dia), obterão a delegação do cartório, tudo em prejuízo ao princípio da impessoalidade e da forma republicana de governo.
4. A efetivação dos não concursados possibilitará inúmeras reivindicações por parte daqueles que também responderam precariamente por cartórios extrajudiciais ou neles substituíram antes de 1994, mas só não serão efetivados porque em seus respectivos Estados houve o concurso público determinado pela Constituição Federal desde 1988. Os réus das reivindicações, cujo desfecho é incerto, serão justamente os Estados que cumpriram as regras constitucionais e realizaram concursos públicos, tudo a gerar instabilidade jurídica.
5. A presente nota técnica é editada com a finalidade de oferecer aos Srs. Parlamentares federais novos subsídios a respeito da PEC 471, especialmente em razão das emendas substitutivas e supressivas recentemente apresentadas e ora analisadas." (grifo nosso).
Por fim, cumpre ressaltar que a malferição dos princípios da moralidade e isonomia já fora bem tratada pela Comissão Nacional de Estudos Constitucionais, cuidando-se de matéria que prescinde de maiores digressões, cabendo a este órgão Plenário exercer um juízo político de pressão junto ao Congresso Nacional, no cumprimento de seu mister legal estatuído no inciso I do art.44 do EOAB.
CONCLUSÃO
Verificando-se, portanto, que a eventual aprovação da PEC nº 471/2005 ameaça vulnerar princípios caros à ordem jurídico-constitucional, inerentes ao governo republicano, notadamente os do concurso público, da isonomia e da moralidade administrativa, temos como evidente retrocesso à ordem jurídica do Estado democrático de direito sua vigência, irrompendo assim o interesse da OAB em sua rejeição.
Ante o exposto, voto pelo acolhimento da proposição da ANDECC, ancorado no parecer de mérito da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais, para que a OAB, através de seu órgão plenário, repudie os termos da aludida PEC, recomendando ao Congresso Nacional sua rejeição, devendo para tanto:
1) Serem extraídas cópias do presente voto, e do parecer do ilustre Professor José Afonso da Silva, que integram o processo, para encaminhamento ao relator da matéria e lideranças das bancadas da Câmara e do Senado;
2) Ser incluída a PEC 471/2005 na agenda de acompanhamento da Comissão Especial de Acompanhamento Legislativo da OAB e de sua Assessoria Parlamentar para monitoramento de sua tramitação.
EMENTA: PEC 471/2005. APOIO DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL A SUA REJEIÇÃO. EFETIVAÇÃO SEM CONCURSO PÚBLICO DE SUBSTITUTOS TEMPORÁRIOS DOS SERVIÇOS NOTARIAIS E DE REGISTROS PÚBLICOS. VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DA MORALIDADE, ISONOMIA E DO CONCURSO PÚBLICO, INERENTES À REPÚBLICA. INCONSTITUCIONALIDADE MANIFESTA. GESTÃO DA OAB JUNTO AO CONGRESSO NACIONAL ATRAVÉS DA COMISSÃO NACIONAL DE ACOMPANHAMENTO LEGISLATIVO. ENVIO DO VOTO E DO PARECER DA COMISSÃO NACIONAL DE ESTUDOS CONSTITUCIONAIS PARA OS PARLAMENTARES COMO SUBSÍDIOS À DELIBERAÇÃO LEGISLATIVA.
Brasília, 19 de setembro de 2011.
PEDRO HENRIQUE BRAGA REYNALDO ALVES
CONSELHEIRO FEDERAL (PE)
[1] CARDOZO, José Eduardo Martins. Princípios Constitucionais da Administração Pública (de acordo com a Emenda Constitucional n.º 19/98). IN MORAES, Alexandre. Os 10 anos da Constituição Federal. São Paulo: Atlas, 1999, p. 150.